sábado, 21 de fevereiro de 2009

Trem, carnaval e Jesus

Voltando prá casa após a aula na Faculdade peguei o trem que liga a Estação Cidade Universitária a Estação Primavera-Interlagos que é aqui perto de casa. Esse trem é curioso. Sempre acontecem situações inusitadas e curiosas

Nesse dia específico o trem estava vazio. Isso por causa do horário. Eram mais de 22:30.

As estações se sucediam até que chegamos na Estação Pinheiros. A locução anuncia: "Estação....Pinheiros. No desembarque cuidado com o espaço entre o trem e a plataforma."

Abrem-se as portas. O fedor do rio adentra o ambiente. Desagradável....

Entram duas pessoas. Um rapaz e uma moça. Ele, estatura mediana, olhos castanhos e cabelos pretos. Provavelmente entre os 27 e 30 anos. A moça era uma mulata. Entre 1,75 e 1,80 chamava a atenção de todos no trem. Lindíssima. Gostosíssima. Com quadris lindos ela tinha os olhos pintados. Pelo o que ela mesma descreveu depois era uma das beldades do carnaval paulista. Saía tanto pela Vai-Vai quanto pela Gaviões da Fiel.

Ambos sentaram frente a frente comigo naquelas cadeiras laterais do trem. As estações se sucediam. Indiretamente eu ouvia a conversa dos dois. Disfarçando com o mp3 no ouvido.

"Meu, aquilo é demais. As meninas são muito vacilonas. A gente tava sambando no show do Revelação ali na Vila Olímpia. As meninas com tudo de fora. O cordão que separava a gente do público era minúsuclo. Depois das 2 da manhã os caras já tavam tudo chapado. Mas chapado, chapado, chapado - ela leva a mão no rosto e ri de leve - e de repente os caras começam a querer invadir a área onde a gente tava dançando. Doidos prá agarrar as nêga que tavam de peito e bunda de fora."

O camarada ouve tudo atentamente. Nas mãos ele tem uma mochila e o mp3 desligado:

"É, vacilo, meu. Os cara tudo chapado."

"Mas é. Isso rola direto. Tem que se cuidar. Depois que você começa a dançar no carnaval surgem mil propostas. Coisas do tipo 'Oi, tudo bem? Cê tá de carro? Não?!?! Então não se preocupa. O meu motorista te leva prá casa. o carro tá ali na frente'. Se você entrar o cara fecha o carro e pergunta quanto é o programa"

"Sério? Desse jeitão mesmo?"

"Desse jeito. Oha.... não tô dizendo que as meninas são santas. Muitas ficam esperando por essa oportunidade. Eu não! Só quero curtir, meu. Entrar na avenida, ver o povo aplaudindo, gritando o nome da escola......lembra o concurso de carnaval do Luciano Huck? Eu tava lá no sábado retrasado. Meu, as propostas são ainda maiores"

Enquanto ela contava suas aventuras e desventuras, do lado oposto a cadeira deles, um homem bem trajado, estatura baixa, lia atentamente um livro. Eu fazendo de tudo para disfarçar e acompanhar as descrições da mulata. O cara parecia que não queria ouvir, mas era impossível não escutar os papos. Por mais que o cara tentasse.

Ela seguia:

"Lá em casa é uma guerra. Cara, quando eu apareci na Band no carnaval passado, todo mundo me elogiou muito. Eu era reconhecida direto. Só meu pai e meus irmãos que não concordavam."

"Sério?"

"Xiiiii. Cê nem imagina! Meu pai abre uma cara desse tamanho - ela estende as mãos em direção ao rosto e as estende lateralmente inchando as bochechas -. Ele fala um mote. Coisa de pai, né? Que acha que a filha ainda é uma princesinha. Acredita que ele ainda me chama assim?"

E abriu uma risada alta.

Pais são assim mesmo. O pai não acredita no crescimento das filhas. Tanto que para o homem é tabú ligar o sexo as filhas. Para o pai a filha é um ser sacro. Ser de pureza e de corpo intocável. Não há coisa mais dolorosa para um pai do que ouvir a filha mencionar sobre um novo namorado. Imagina então se ela aparecer grávida?
O mundo do pai acaba tão velozmente e de modo tão trágico como se ele da noite para o dia ele fosse capado. Dói demais.....

"Meu, eu cheguei em casa E-XAUS-TA!. Mas feliz prá caramba. O sambódromo tava lindo e a Band me entrevistou. Minha mãe me elogiou. Meu pai - ela ria meio com deboche - me olhava sério. Gente, o que era aquilo. Dizia 'você sabe o que eu acho disso. Que coisa estúpida....'

Enquanto eu observo disfarçadamente a conversa dos dois chegamos a Estação Santo amaro do trem. Ela ia seguir as descrições do mundo do carnaval quando o homem que estava lendo um livro ali próximo se levanta e vai com um papel em direção a ela:

"Gente, queria deixar isso com vocês. Jesus ama vocês, tá bom? Jesus tem um propósito na vida de todos nós. Fiquem com Deus!!"

A carnavalesca se calou. Ela e o amigo que estava ao seu lado. A beldade olhava o folheto respeitosamente. Meio que segurando um riso, mas manteve-se em silêncio.

Eu fiquei abismado. Ela falando de putaria alto prá todo mundo escutar.
O camarada, provavelmente, um evangélico daqueles bem tradicionais. Não teria medo da pessoa rir da sua cara? Apesar que não havia feito nada de mal em entregar um papel.

O evangélico atravessa a porta do trem na Estação Santo Amaro. Me olha num relance. Me cumprimenta com leve aceno de cabeça e parte.

Toca-se a campainha para fechamento das portas. As portas se fecham e o trem parte em direção a próxima estação. Os dois abrem uma risada. A moça diz:

"Cara, que sarro! Deu vontade de dizer: 'Meu amigo, eu sou do diabo! Eu bebo, fumo, danço pelada....." Veio um silêncio. Ela prossegue: "Mas sabe duma coisa? Apesar de achar muita graça nisso aqui.... não consigo jogar esses papéis fora." E de leve colocou o papel dentro da bolsa.

A conversa dali em diante desacelerou. Ela e o amigo desceram três estações a frente. Na estação seguinte foi a minha vez de desembarcar. O que vi me marcou fundo. Ela, toda poderosa, desejada, ficou encabulada com um papel de divulgação religiosa. Talvez o papel simbolize algo que no inconsciente dela represente um mundo de ordem, moral e regras. O oposto do universo que ela frequenta e tanto gosta.
Liberdade não é seguir seus instintos, mas sim suas escolhas é o que diz o meu considerado Domingos Oliveira. A carnavalesca fez a escolha dela. Porém, por um instante ela pode ter sentido que há uma outra forma de felicidade que alguém gratuitamente a mostrou.

Desço na minha estação. Já eram mais de 23:00. Segui a minha caminhada até o meu mundo. Onde carnavais e Jesus se misturam. E onde trens e seus passageiros me dão lições. Apontando que as escolhas envolvem ganhos e perdas. E ao se escolher..... não se deve olhar prá trás.

Um comentário:

  1. Emocionante ... simplesmente fico sem falavras para descrever suas histórias!!! Como consegue se lembrar com tanta riqueza de detalhes e a forma com que observa tudo e tira o melhor proveito das situação!!!

    Parabens meu querido!!!

    Por favor, não pare de escrever ... vc é ÓTIMO nisso tb rs

    Bjus

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